Cachaça na alta gastronomia: harmonizações surpreendentes com pratos sofisticados
- Felipe Sabor
- 17 de jul.
- 3 min de leitura
Por muito tempo, a cachaça esteve à margem da mesa posta. Não por ausência de mérito, mas por excesso de preconceito. Enquanto uísques escoceses e cognacs franceses ganhavam lugar à mesa com o status de digestivos respeitáveis, a cachaça — brasileiríssima, complexa, ancestral — era relegada à caipirinha de entrada, quando muito. E, ironicamente, era ali que ela parava.
Mas os tempos mudaram — e o paladar também. Hoje, chefs estrelados, sommeliers com alma aberta e críticos gastronômicos sem colonização sensorial têm voltado o olhar (e o nariz) para o que antes era subestimado. A cachaça entrou, enfim, no salão nobre da gastronomia brasileira. E não como figurante — mas como par.

O que mudou? Nada. Só aprendemos a olhar melhor.
A complexidade da cachaça sempre esteve lá. Em suas madeiras nativas, no terroir brasileiro que vai do sal do litoral à acidez das montanhas, na fermentação espontânea de alambiques artesanais que mais parecem pequenas capelas do sabor.
O que mudou foi o olhar. O que antes era visto como forte demais, rústico demais, agressivo demais, passou a ser compreendido como intenso, legítimo, preciso.
Assim como se aprende a amar a pungência de um queijo azul ou a textura mineral de um vinho laranja, o novo paladar do comensal contemporâneo está — felizmente — mais preparado para compreender a sofisticação silenciosa da cachaça.
Cachaça é madeira, acidez, tempo e alma — e isso combina com muito mais do que você imagina
A primeira quebra de paradigma é simples: harmonizar não é igualar. Harmonizar é dialogar. Às vezes com doçura, às vezes com tensão. E poucas bebidas têm o repertório de diálogo que a cachaça oferece.
Veja a amburana, por exemplo. Seu perfil doce-amadeirado, com notas de baunilha, canela e castanhas, encontra eco em sobremesas de especiarias, mas também em carnes de cocção lenta. Um carré de cordeiro com crosta de pistache e purê de batata-doce, por exemplo, se transforma ao lado de uma dose de cachaça amburana levemente resfriada, servida em taça de vinho branco. A gordura se dissolve, a especiaria ganha vida, e o prato — de repente — fala com sotaque brasileiro.
Já a cachaça branca, não envelhecida, com sua acidez viva e notas vegetais de cana recém-cortada, funciona como um contraponto fresco em pratos de frutos do mar. Um polvo grelhado com emulsão cítrica e coentro fresco, por exemplo, pede uma cachaça branca mineral, destilada em alambique de cobre, servida gelada em copo pequeno. O resultado? Um mar em sua boca — mas com raiz.
E o que dizer do bálsamo, com sua resina intensa, quase medicinal? A madeira mais temperamental da cachaça é, curiosamente, a que melhor harmoniza com pratos de acidez elevada e notas verdes. Um steak tartare com gema curada e mostarda de Dijon encontra no bálsamo o antagonista perfeito. É um embate. Mas é também uma dança. E os melhores casais, como se sabe, gostam de brigar com elegância.
Alta gastronomia é feita de risco — e a cachaça entra como provocação bem-vinda
Hoje, nos salões de restaurantes estrelados em São Paulo, Belo Horizonte e até Nova York, já é possível encontrar menus de degustação com pairing de cachaça. Mas ainda é raro. E justamente por isso, é precioso.
O comensal que experimenta uma sequência de pratos pensados não apenas para serem harmonizados com vinhos franceses, mas com destilados nacionais, vive uma experiência mais íntima, mais arriscada — e mais honesta. Não há escudo do prestígio europeu. Há brasilidade líquida. Há confronto. Há surpresa.
E em um universo gastronômico cada vez mais previsível, onde risotos de trufas se tornaram lugar-comum e os molhos asiáticos já não provocam espanto, a cachaça é uma ruptura. Uma volta à origem, com farda de gala.
Um futuro servido em copos pequenos
Talvez o grande luxo da gastronomia contemporânea seja isso: colocar o local no centro da mesa, sem precisar pedir desculpas por isso. A cachaça, antes deixada de lado, agora serve como manifesto líquido da nova sofisticação brasileira.
Ela harmoniza com ostras e rabada, com queijos de casca lavada e chocolate 70%.Ela pode ser servida em cálice de cristal, em copinho de barro ou direto do tonel. Ela pode abrir o jantar ou encerrá-lo em grande estilo.
Mas acima de tudo, a cachaça pode ocupar um lugar que há séculos já era seu — o da expressão máxima de um Brasil que sabe o valor do tempo, da madeira e da transformação.
Não se trata mais de “dar espaço” à cachaça. Trata-se de reconhecer que ela sempre esteve à mesa. E agora, finalmente, estamos prontos para ouvi-la.
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